quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Quando chegar o fim do mundo



Quando chegar o fim do mundo vamos ter tempo para tudo: para beijar a mãe na cara, o filho nas mãos, a mulher nos lábios e a amante na boca.

Quando chegar o fim do mundo vamos fazer libações e buscar no fundo das nossas casas as garrafas mais antigas para a bebedeira mais recente. E vamos festejar… e dizer tudo o que queremos às pessoas que não gostamos, mas quando estivermos perto delas a dizer-lhes o que não querem ouvir até vamos mudar de opinião porque, à luz da morte antecipada, os inimigos vão-nos parecer a bondade em pessoa… que está quase no fim.

E o dinheiro vai ter prazo de validade, e o poder também, e o amor será eterno até determinada hora, e ninguém vai querer dormir… nem as mães que adormecem a contar a história do mundo às crianças que nasceram agora.

Quando chegar o fim do mundo iremos pela última vez ao jardim zoológico para libertar os animais… e depois olhar para as jaulas vazias e pensar que a jaula maior vai deixar de existir porque vai implodir como uma melancia que se recusou a apodrecer e quis sair em beleza, vertendo-se pela cara dos que a queriam comer.

E quando os céus ficarem vermelhos como as mãos que apertamos, quando os céus ficarem tintos como o vinho que bebemos… vamos erguer as taças e gritar tudo o que ficou por fazer. E, no meio da explosão que nos dizima o corpo, tudo é finalmente verdadeiro e estamos realmente unidos, ainda que uns tenham preferido o pico de uma montanha ou o canto de um bunker. Todos temos os punhos cerrados, os braços a tapar a cara, o corpo encolhido, o olhar do pânico, a boca seca, a vida por um fio, as mãos suadas, um grito anunciado e uma eterna vontade de suicídio por não termos escolhido o fim… mas por alguém o ter escolhido por nós.

E agora que não estamos cá para destruir tudo o que nos rodeia… tudo o que existia só para estar à nossa volta desapareceu também. E como derradeiro lamento deixamos para trás a esperança de termos morrido apenas nós… e não todos. E queremos que os que ficaram sejam felizes… e esqueçam o nosso rosto e a nossa maldade para que vivam todos os dias celebrando o primeiro que vai ser amanhã… porque o hoje já se foi e esta data no calendário será para sempre lembrada como o dia em que me mataram, a mim, que estava a mais e a impedir o mundo de ser perfeito.


in "luto lento", de João Negreiros
http://joaonegreiros.blogspot.com/

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