quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A morte e as zebras

Nós éramos 157 zebras
a galopar pela planície ressequida,
eu corria atrás das zebras 24,
25 e 26,
à frente da 61 e da 62
e de súbito fomos ultrapassadas com um salto
pela 118 e a 119,
ambas a gritar rio, rio,
e a 25, muito feliz, repetiu rio, rio,
e de súbito a 130 alcançou-nos
a correr e a gritar, muito feliz, rio, rio,
e a 25 deu uma guinada à esquerda
à frente da 24 e da 26
e de súbito eu vi o sol no rio cintilante
cheio de salpicos faíscantes
e a 8 e a 9 passaram por mim
a correr na direcção contrária
com as suas bocas cheias de água
e as pernas molhadas e os peitos molhados,
muito felizes, a gritar, vamos, vamos, vamos,
e eu de súbito colidi com a 5 e a 7
que também vinham a correr na direcção contrária
mas a gritar crocodilo, crocodilo,
e então a 6 e a 30 e a 14 passaram por nós
muito assustadas, a gritar, crocodilo, crocodilo, vamos, vamos, vamos,
e eu bebi água, bebi água cintilante
cheia de salpicos faíscantes e sol,
crocodilo, crocodilo, gritou a 25, muito assustada,
crocodilo, repeti eu, voltando para trás;
e correndo muito assustada na direcção contrária
colidi de súbito com a 149
e a 150 e a 151
que vinham a correr e a gritar, muito felizes, rio, rio,
crocodilos, crocodilos, gritei-lhes eu, muito assustada
com a minha boca cheia de água
e as pernas molhadas e o peito molhado.
Continuei a galopar pela planície ressequida
atrás da 24 e da 26
à frente da 60 e da 61
e de súbito vi, de súbito vi um espaço
entre a 24 e a 26, um espaço
e continuei a galopar pela planície ressequida
e de novo vi o espaço, de novo o espaço,
entre a 24 e a 26
e de súbito saltei e preenchi o espaço.

Nós éramos 149 zebras
a galopar pela planície ressequida,
e à minha frente estavam a 12, a 13
e a 14, e atrás de mim
a 43 e a 44

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Para fazer o retrato de um pássaro

Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta
pinta a seguir
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro.
agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta
esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres…
às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho
com o pincel
depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar
se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar
então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro

Jacques Prévert
Tradução de Eugénio de Andrade

ESCREVENDO POESIA

De todo, não: não é difícil escrever poesia –
é impossível.
De contrário, pensas que teria persistido nisto
por mais de 40 anos?

Tenta, tenta só
pôr asas numa pedra, tenta
seguir o rasto de um pássaro
no ar.

sábado, 29 de maio de 2010

Subtil Diferença

"Depois de algum tempo aprendes a diferença, a subtil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma. E aprendes que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre significa segurança. E começas a aceitar as tuas derrotas com a cabeça erguida e os olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança.

E aprendes a construir todas as tuas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair no meio do vão. Depois de um tempo aprendes que o sol queima se ficar exposto muito tempo. E aprendes que não importa o quanto te importas, algumas pessoas simplesmente não se importam... e aceitas que não importa o quão boa seja uma pessoa, ela vai magoar-te e tu tens de perdoá-la por isso!

Aprendes que falar pode aliviar dores emocionais. Descobres que se leva anos para construir confiança e apenas segundos para destruí-la, e que Tu podes fazer coisas num instante, das quais te arrependerás pelo resto da vida. Aprendes que as verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distancia. Aprendes que o que importa não é o que tens na vida, mas o que TU és na vida! E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher. Aprendes que não tens que mudar de amigos se compreenderes que os amigos mudam, percebes que o teu amigo e TU podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos.
Descobres que as pessoas com que mais te importas na vida são tomadas de ti muito depressa, por isso devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas, pois pode ser a ultima vez que a vemos. Aprendes que as circunstancias e os ambientes têm influência sobre nós próprios. Começas a aprender que não te deves comparar com os outros, mas com o melhor que tu mesmo podes ser. Descobres que levas muito tempo a tornares-te na pessoa que queres e que o tempo é curto. Aprendes que não importa onde já chegaste, mas onde vais, mas se tu controlas os teus actos ou eles te controlarão, e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem dois lados.

Aprendes que heróis são aqueles que sempre fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as consequências. Aprendes que paciência requer muita prática. Descobres que algumas vezes a pessoa que esperas que te calque quando cais é umas das poucas que te ajudam a levantar.
Aprendes que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que tiveste e que aprendeste com elas do que com quantos aniversários celebraste. Aprendes que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são tolices, poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso. Aprendes que quando estás com raiva tens o direito de estar, mas isso não te dá o direito de seres cruel!

Descobres que só porque alguém não te ama da maneira que queres que te ame, não significa que essa pessoa não te ame, pois existem pessoas que nos amam, mas não sabem como demonstrar isso. Aprendes que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém... algumas vezes tens de aprender a perdoar-te a ti mesmo! Aprendes com a mesma severidade com que julgas, serás em algum momento condenado. Aprendes que não importa em quantos pedaços o teu coração foi partido, o mundo não pára para que o concertes. Aprendes que o tempo não é algo que possa voltar para trás. Portanto, planta o teu jardim e decora a tua alma, ao invés de esperares que alguém te traga flores.

E aprendes que realmente podes suportar... que realmente és forte! E que podes ir muito mais longe depois de pensares que não podes mais... e que realmente a nossa vida tem valor e que tu tens valor diante da vida! As nossas dúvidas são traidoras e fazem-nos perder o bem que poderíamos conquistar, se não fosse o medo de tentar."

William Shakespeare

sexta-feira, 28 de maio de 2010

fumaça

quando o medo abre a janela
e se esconde em meu armário
pego a bolsa
fecho a porta
saio pra fazer as unhas

sozinho em casa
o medo vira fumaça

por Adelaide Amorim
http://inscries.blogspot.com/

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A minha avó Merceana

A minha Avó Merceana pensa ter vivido o bastante,
mas a vida mesmo acha que não.
Todas as noites talvez ela tenha desejos suicidas,
grandiosos ou sombrios,
mas é implacável o tempo que a sustem.
Quão lenta é a morte! - Deve ela exasperar-se.
Nós, que a amamos como se ama
a própria carne,
não gostamos de saber
que um dia ela nos deixará.
Mas é implacável o tempo
que celeremente a está levando...

Por João Melo em Auto-Retrato

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Fúrias

Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço
E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contra tempo

(Segundo a mitologia grega, as Fúrias eram três divindades vingadoras que viviam no Inferno, subindo à Terra para perseguir os malvados. Ainda que justas, as Fúrias não atendiam a circunstâncias atenuantes, punindo de forma impiedosa).


Sophia de Mello Breyner Andresen (in Ilhas)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Excertos de "A insustentável leveza do ser" de Milan Kundera

O que são vertigens? Medo de cair? Mas então porque é que temos vertigens num miradoiro protegido com um parapeito? As vertigens não são o medo de cair. É a voz do vazio por debaixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair do qual, logo a seguir, nos protegemos com pavor.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O silêncio dos Poetas

"... le poéte est hors du langage, il voits les mots à l’envers, comme s’il n’appartenait pas à la conditions humaine et que, venant vers les homes, il recontrât d’abord la parole comme une barrier” Jean Paul Sartre


"… o poeta está fora da língua, vê as palavras ao contrário, como se não pertencesse à condição humana e, chegando junto dos homens, começasse por encontrar a palavra como uma barreira”

Jean Paul Sartre

trad. Alberto Pimenta
in " O silêncio dos Poetas"
Livros Cotovia

quarta-feira, 17 de março de 2010

O que será?




O que será, que será?
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
E gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza
Será, que será?
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho...

O que será, que será?
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos dos desvalidos
Em todos os sentidos...

Será, que será?
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido...

O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo...(2x)

Lá lá lá lá lá……..

domingo, 31 de janeiro de 2010

Com os mortos

Os que amei, onde estão? idos, dispersos,
Arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...

E eu mesmo, com os pés imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos...

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei: vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.

Antero de Quental

A Poesia Vai Acabar

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —

Manuel António Pina, in
"Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Quando chegar o fim do mundo



Quando chegar o fim do mundo vamos ter tempo para tudo: para beijar a mãe na cara, o filho nas mãos, a mulher nos lábios e a amante na boca.

Quando chegar o fim do mundo vamos fazer libações e buscar no fundo das nossas casas as garrafas mais antigas para a bebedeira mais recente. E vamos festejar… e dizer tudo o que queremos às pessoas que não gostamos, mas quando estivermos perto delas a dizer-lhes o que não querem ouvir até vamos mudar de opinião porque, à luz da morte antecipada, os inimigos vão-nos parecer a bondade em pessoa… que está quase no fim.

E o dinheiro vai ter prazo de validade, e o poder também, e o amor será eterno até determinada hora, e ninguém vai querer dormir… nem as mães que adormecem a contar a história do mundo às crianças que nasceram agora.

Quando chegar o fim do mundo iremos pela última vez ao jardim zoológico para libertar os animais… e depois olhar para as jaulas vazias e pensar que a jaula maior vai deixar de existir porque vai implodir como uma melancia que se recusou a apodrecer e quis sair em beleza, vertendo-se pela cara dos que a queriam comer.

E quando os céus ficarem vermelhos como as mãos que apertamos, quando os céus ficarem tintos como o vinho que bebemos… vamos erguer as taças e gritar tudo o que ficou por fazer. E, no meio da explosão que nos dizima o corpo, tudo é finalmente verdadeiro e estamos realmente unidos, ainda que uns tenham preferido o pico de uma montanha ou o canto de um bunker. Todos temos os punhos cerrados, os braços a tapar a cara, o corpo encolhido, o olhar do pânico, a boca seca, a vida por um fio, as mãos suadas, um grito anunciado e uma eterna vontade de suicídio por não termos escolhido o fim… mas por alguém o ter escolhido por nós.

E agora que não estamos cá para destruir tudo o que nos rodeia… tudo o que existia só para estar à nossa volta desapareceu também. E como derradeiro lamento deixamos para trás a esperança de termos morrido apenas nós… e não todos. E queremos que os que ficaram sejam felizes… e esqueçam o nosso rosto e a nossa maldade para que vivam todos os dias celebrando o primeiro que vai ser amanhã… porque o hoje já se foi e esta data no calendário será para sempre lembrada como o dia em que me mataram, a mim, que estava a mais e a impedir o mundo de ser perfeito.


in "luto lento", de João Negreiros
http://joaonegreiros.blogspot.com/

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Trainspotting

Choose life.
Choose a job.
Choose a career.
Choose a family.
Choose a fucking big television, Choose washing machines, cars, compact disc players, and electrical tin openers.
Choose good health, low cholesterol and dental insurance.
Choose fixed- interest mortgage repayments.
Choose a starter home.
Choose your friends.
Choose leisure wear and matching luggage.
Choose a three piece suite on hire purchase in a range of fucking fabrics.
Choose DIY and wondering who you are on a Sunday morning.
Choose sitting on that couch watching mind-numbing sprit- crushing game shows, stuffing fucking junk food into your mouth.
Choose rotting away at the end of it all, pishing you last in a miserable home, nothing more than an embarrassment to the selfish, fucked-up brats you have spawned to replace yourself. Choose your future.
Choose life...
But why would I want to do a thing like that?

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Poemarma



Que o poema tenha rodas motores alavancas
que seja máquina espectáculo cinema.
Que diga à estátua: sai do caminho que atravancas.
Que seja um autocarro em forma de poema.

Que o poema cante no cimo das chaminés
que se levante e faça o pino em cada praça
que diga quem eu sou e quem tu és
que não seja só mais um que passa.

Que o poema esprema a gema do seu tema
e seja apenas um teorema com dois braços.
Que o poema invente um novo estratagema
para escapar a quem lhe segue os passos.

Que o poema corra salte pule
que seja pulga e faça cócegas ao burguês
que o poema se vista subversivo de ganga azul
e vá explicar numa parede alguns porquês

Que o poema se meta nos anúncios das cidades
que seja seta sinalização radar
que o poema cante em todas as idades
(que lindo!) no presente e no futuro o verbo amar.

Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal.

Que o poema seja encontro onde era despedida.
Que participe. Comunique. E destrua
para sempre a distância entre a arte e a vida.
Que salte do papel para a página da rua
.
Que seja experimentado muito mais que experimental
que tenha ideias sim mas também pernas
E até se partir uma não faz mal:
antes de muletas que de asas eternas .

Que o poema fique. E que ficando se aplique
A não criar barriga a não usar chinelos.
Que o poema seja um novo Infante Henrique
Voltado para dentro. E sem castelos.

Que o poema vista de domingo cada dia
e atire foguetes para dentro do quotidiano.
Que o poema vista a prosa de poesia
ao menos uma vez em cada ano.

Que o poema faça um poeta de cada
funcionário já farto de funcionar.
Ah que de novo acorde no lusíada
a saudade do novo o desejo de achar.

Que o poema diga o que é preciso
que chegue disfarçado ao pé de ti
e aponte a terra que tu pisas e eu piso.
E que o poema diga: o longe é aqui.


Poemarma, de Manuel Alegre, in Operário em Construção, Voz de Mário Viegas, Música Original de Luís Cilia, som de Moreno Pinto, Design Gráfico do João Massapina, fotografia de Luís Carvalho

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Excertos do "Carnaval Literário" de Manuel Teixeira Gomes

Seria o cúmulo da habilidade - donde poderia sair uma sólida religião positiva - dar aos problemas algébricos forma de sentimento.

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Um pedaço de Lua mal talhada (em escama de peixe) que aparece agora de dia, no azul do céu, foi coisa esquecida do cenário da noite, quando o recolheram a bastidores.

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... com o espirito, coração e alma perdidos no labirinto de Londres, em cuja reconstituição os ocupava dia e noite. Daí abrolharam algumas horas de delírio, de loucura, durante as quais eu revia a série alucinante dos "olhares esquecidos", cuja luz, ou bruxuleante ou viva, ou estagnada ou moribunda, ou suave ou ofuscante ou pavorosa, sempre inquietadora, os meus olhos absorviam ao acaso do cruzar aventuroso pelas ruas da imensíssima cidade. Essa infinidade de "olhares esquecidos", reflectindo o azul profundíssimo dos lagos, os horizontes quiméricos dos mares, o luzir malicioso das estrelas, as prateadas tremulinas do luar, o frio cristal facetado das fontes, a mágoa dos malogrados crepúsculos, as estrias do verde fel com que se turvam o rios na passagem pelas cidades, ou o sangue do fogo rompendo o coração das trevas; essa infinidade de moventes jóias veio recamar as pregas mais secretas do meu roçante de viagem que eu ainda trazia pegado à carne, e que fosforecia de reverberações diabólicas, a cada movimento que da alma me passasse ao corpo. (...) Só me pesa uma dúvida: seria tudo o resultado de um prodigioso concurso ocasional de circunstâncias favoráveis, e tentar repetir aqueles dias não será arruinar com inevitáveis desilusões o maravilhoso edifício das minhas saudades?